Inquérito sobre o Maio de 68: Jorge Valadas

Inquérito preparado por Youri Paiva. Fotografia de Gérald Bloncourt, “Greve na Renault de Boulogne-Billancourt”.

Nos 50 anos do Maio de 68, lançámos um inquérito de quatro questões a quatro pessoas que estiveram, por essa altura, em França.

Responderam ao inquérito: Jorge Valadas, José Mário Branco, Manuel Villaverde Cabral e Tila Cascais.

  1. O que te levou a estar em França em 1968?

O responsável da minha presença em França, em 1968, foi o estado da sociedade portuguesa. Para quem não sabe, naqueles tempos não havia turismo low cost ou programas Erasmus. Eu tinha vinte anos, era tudo um abafo. Respirava-se mal, o peso da moral religiosa e do regime salazarista bolorento era insuportável. Não conseguíamos ser adultos, estávamos destinados a fazer parte do Portugal dos pequeninos. Na vida de todos os dias as relações eram dominadas pela mentira e pela hipocrisia, o medo e o silêncio reinavam, a vida amorosa era miserável, a curiosidade que eu, como todos os jovens, tinha pelo mundo, era insatisfeita. Não digo que todos estes traços da velha cultura lusitana tenham hoje desaparecido, pelo contrário. Mas eles vestem hoje os trajes da modernidade consumista. Como se tudo isto já não nos chegasse, na altura caiu-nos em cima a guerra em África. Um enorme acontecimento que abalou tudo na sociedade, deixou em farrapos os fados dos brandos costumes, pôs a descoberto o facto colonial para muitos jovens. Eu vivia num meio da pequena burguesia, fora da política da oposição ao regime. Os meus pais, pequenos funcionários da educação, eram simples conformistas, silenciosos, mas a política chegava-me de fora, pela minha revolta pessoal. Para agravar o meu caso, seduzido pelo mar e pelas viagens, ansioso de respirar o ar dos grandes espaços, enfiei-me numa escola militar, a Escola Naval do Alfeite. Havia, na época, naquela instituição, por muito estranho que hoje pareça, um espírito rebelde, anti-regime, uma atitude quase anti-militarista diria mesmo… Era também um lugar onde os ecos da guerra colonial estavam mais presentes, obviamente. Bem ou mal, chegavam-nos informações sobre o que se passava em África.

Tudo isto pintava uma cena de asmáticos e de mediocridade, onde se avizinhava a perspectiva de um grande desastre. Quando saí da Escola Naval, como jovem oficial, já eu tinha tomado a decisão de zarpar, procurar a verdadeira vida, romper com o regime, a sociedade e as crises de asma. A rejeição da guerra foi a gota de água, uma grande gota, que fez transbordar o copo. Tinha chegado à conclusão que, se queria preservar o que sentia de humano em mim, tinha de partir. E assim foi. Uma daquelas rupturas que marcam uma vida. Meti uma licença para ir à feira de Badajoz ou Sevilha – já não sei –, e acabei, em Setembro de 1967, em Paris, após uns meses a navegar no Sul da França, em auto-stop. Sozinho, com a minha mochila e com poucas economias no bolso. Como eu nunca tinha andado próximo de meios políticos clandestinos, não tinha um único contacto em Paris. Era o que se chama partir do zero. Uma amiga francesa arranjou-me um quarto no sótão e um trabalho de distribuição de publicidade. Passei alguma fome, mas nada de insuportável. Já não era a fome de liberdade! Ainda me inscrevi na universidade, mas aquilo era demasiado escolar para mim e o que me interessava eu lia por fora. E tinha de trabalhar para comer. No Inverno de 1967/68, descobri, numa livraria do bairro latino, um número duma revista chamada Cadernos de Circunstância, que me seduziu logo. Era um colectivo assim esquisito, uma gente que tinha passado pelo PCP [Partido Comunista Português] sou por outras organizações, já com grande experiência e cabedal político, uma vivacidade corrosiva que me agradou. Como me encantou também a forma crítica como eles atacavam o microcosmos dos exilados lusitanos. Dos comunistas aos maoístas de diversas tendências, e salvo raras excepções, aquela gente vivia fechada num frasco de clorofórmio patriótico e saloio, totalmente separados da situação social do resto da Europa e da França, onde vivíamos, em particular. O pessoal dos Cadernos dizia-se mais ou menos marxista-luxemburguista [da corrente de Rosa Luxemburgo]. O que era, na altura, um objecto OVNI, pode passar hoje por uma marca de cerveja artesanal. Enviei-lhes um texto que tinha escrito sobre a crise nas forças amadas, que eles publicaram e que, soube anos depois, parece ter tido algum impacto nos meios dos jovens oficiais que formaram mais tarde um tal MFA [Movimento das Forças Armadas], do 25 de Abril. E integrei o colectivo da revista com o estatuto de jovem revoltado e aprendiz em política radical. Na altura, eu ouvia mais do que opinava. E assim chegamos a Maio de 1968, quando nasci de novo.

  1. Quando falamos do Maio de 68, também falamos de pessoas que “estiveram” no Maio de 68. O que foi esse teu “estar” no Maio de 68?

Como será isso de “estar” no Maio de 68? Maio de 68 foi um grande momento de contestação da ordem dominante. Mas a situação já se estava a forjar antes. A situação de classes era de grande conflito, havia greves fortes e combativas em França e também na Bélgica. Havia um descontentamento profundo que o fim da guerra da Argélia tinha deixado a pairar. E quando o movimento estudantil tomou fôlego e se estendeu à rua, onde se fez a junção com esse descontentamento geral e com os trabalhadores, foi um rastilho. Em poucos dias estávamos em greve geral. Uma sociedade parada, bloqueada, que não funciona pela decisão dos trabalhadores de dizer «Não!» é algo de raro na história. E algo de extraordinário, que revela, de repente, o poder dos que a fazem funcionar. Que abre um espaço infinito de possíveis, de imaginários, de desejos, de projectos inventados. Voltei a sentir isso de novo depois, no 25 Abril, em Portugal. Não é fácil de descrever, é o mundo ao contrário. O tempo não é o mesmo. Aquelas horas e dias e noites que se sucedem tem outro tempo. Os relógios são outros. E assim nos descobrimos diferentes, outros do que somos em tempos ditos normais, com dimensões e potencialidades humanas que ignorávamos. Sem aceitar isto, não se pode perceber o que se passou, ou então vai-se reduzir tudo aos limites do que vivemos em tempos alienados. Por vezes, eu penso que não se podem descrever estes momentos, o Maio de 68 ou o pós-25 de Abril em Portugal, com as palavras e os lógicas do tempo normalizado. Escapa-nos sempre o que é difícil a descrever, a dimensão subversiva do quotidiano.

Concretamente, com alguns dos membros dos Cadernos, mergulhámos nos sítios onde se passavam as coisas, na rua, nos lugares ocupados, nos debates que existiam em todo os lados, das portas das fábricas à saídas dos metros. Como andávamos pelas áreas do anti-leninismo, fomos seduzidos pelas actividades dos comités autónomos que se formavam, nos bairros e também em algumas universidades de Paris. Comités de estudantes e de trabalhadores que tentavam, do exterior dos lugares de trabalho, soprar os ventos da contestação de Maio, a critica do poder do saber burocrático das organizações antigas, que faziam esforços desesperados para esta grande vaga de energia espontânea entrasse para dentro dos projectos e tácticas políticas dos compromissos e negociatas com as forças da ordem capitalista. A universidade de Censier, em Paris, era um dos centros destes comités e foi ali que me integrei. Para nós, o que havia a fazer era “estar” onde o movimento estava. Assim foi até ao fim. A nossa actividade política particular desapareceu, dissolveu-se no movimento. E eu integrei também neste vulcão de possíveis, na revolta social global, a minha revolta de juventude. Já não estava só e num mês aprendi centenas de anos de coisas, ideias e práticas, descobri todo um mundo de camaradas e de amizades cúmplices que o foram para o resto da vida.

  1. Como sentiste o que estava a acontecer em França em relação à ditadura em Portugal?

A ideia que partilhávamos no momento era que a situação política em Portugal era inseparável da situação europeia e mundial. A guerra colonial tinha vindo clarificar esta relação. O fascismo lusitano, que tinha conseguido sobreviver à custa de compromissos, à derrota das forças do Eixo, que lhe eram favoráveis, sofreu o primeiro grande abalo com o começo da perca das colónias na Índia e, depois, com o começo das guerras nacionalistas em África. As relações militares da França com o regime salazarista mostravam que a colaboração entre a PIDE e a polícia francesa não eram nada de anormal. O apetite que os grupos capitalistas europeus mostravam pela sua instalação em Portugal eram outra prova desta cada vez maior interdependência. Então, isto analisado e percebido, não tinha sentido a saloiada de uma actividade política centrada na terrinha, como se a sorte do regime em Lisboa depende-se dos Humbertos Delgados e outros personagens de novela lusitana. Para uma minoria dos exilados, entre os quais o grupo que eu integrava, a luta contra o regime lusitano passava também pela luta contra o regime francês. Era evidente antes de Maio de 68 e mais ainda depois. Os movimentos de Maio, que alastraram de Berlim a Paris, de Copenhaga a Roma e a Londres, punham em perspetiva uma nova Europa e fragilizavam as alianças antigas entre os Estados. Ao mesmo tempo, as revoltas nos países de Leste abriam brechas no projecto estalinista europeu, no qual o PCP de [Álvaro] Cunhal jogava um papel importante. Tudo aparecia interligado e interdependente, e a actividade política só poderia ganhar dimensão tendo em conta estas relações. Depois de Maio de 68 continuámos, claro está, a interessarmo-nos pela situação social portuguesa, pelas lutas estudantis e operárias que se desenvolviam num ciclo crescente de insatisfação e de oposição à sangria da guerra colonial – cada vez mais odiada. Mas esse interesse foi sempre posto em perspectiva com o estado da situação na Europa, da qual dependia cada vez mais o esforço de guerra português. Parecia-nos mais importante de difundir em Portugal informações e análises sobre o que se passava na Checoslováquia ou na Itália, contribuir para o desenvolvimento de um pensamento critico independente das ideologias frias do estalinismo, apoiar todas as formas embrionárias de organização independente, que passar o tempo a discutir as ultimas teses do Avante! ou as lutas internas dos grupos maoístas.

  1. O que é que o Maio de 68 nos deixa para hoje e para o futuro?

Bom, o Maio de 68 ainda não acabou, só começou. O Maio de 68 não deixa nada, continua a criar, a ser, a fazer. Continuou em Abril de 1974 em Portugal, continuou na Itália nos anos quentes. Continua hoje nas lutas das ZAD [Zone à Defendre] contra o aeroporto de Nantes ou contra as minas de linhito perto de Colónia.

O Maio de 68 é uma história de toupeiras. Não é um negócio (no sentido brasileiro e português) de políticos e associados, universitários,  especialistas do social e outros que tal.

Evidentemente, quando se constata o estado de desastre bárbaro em que se encontra hoje o mundo, entre guerras e a destruição ecológica, a confusão ideológica, a crise do sistema representativo e a sua consequência na subida das velhas forças nacionalistas, demagógicas e reaccionárias. O que acabo de dizer exige explicação.

O primeiro argumento dos movimentos de 68 é a afirmação de que as forças politicas que defendem a lógica capitalista não têm soluções para os problemas criados por esta mesma lógica. Na economia, na sociedade e, hoje sobretudo, na destruição ecológica das condições de vida. Esta falência reproduz, século após século, a emergência de reacções bárbaras e alienadas, fundadas na exclusão, nas guerras e na destruição. Depois de tanto “progresso” aladroado pelas forças do modernismo progressista durante anos, estamos de novo no desastre planetário e numa situação que se assemelha aos anos do fim [da República] de  Weimar. Mesmo a ideia de “progresso”, que é medido pela dinâmica do lucro capitalista, aparece nitidamente como sinónimo de “desastre”. E estas forças de reforma continuam a remar no mesmo sentido, não podem alterar o seu rumo, são  programadas para o que fazem. O reformismo não é reformável. Esta ideia dos limites da política burguesa estava bem presente no Maio de 1968, com a rejeição profunda da ideia que o saber dos chefes é o único caminho e que se deve obedecer a este saber dos chefes. Mais ainda, foi a rejeição da lógica das etapas, das reformas progressivas. Hoje não há mais espaço para reformas e a palavra é sinónimo de retrocesso. Uma cena de desastre total sem perspectivas. No Maio de 68 tomou força, de novo, a ideia que só uma acção directa, controlada pelos trabalhadores e dominados por eles próprios, podia pôr fim a esta lógica e abrir para a construção de uma sociedade nova, de uma vida nova. Para tal é imprescindível a auto-organização e a independência do pensamento político. E a separação entre o político a economia é apenas um aspecto da alienação social, da separação entre os que reproduzem a sociedade e as “leis” ditas intocáveis do seu funcionamento. A alienação dos indivíduos é um produto directo desta alienação da organização social. Tudo isto foi reposto de forma transparente no Maio de 68 e continua a ser a única abordagem para perceber o que vivemos hoje. O resto é politiquice, é “lixo”, para retomar a nosso proveito o discurso dos bandidos das agências de especulação  financeira.

As “celebrações” do Maio de 68 foram, neste sentido, de uma obscenidade sem limites, para o desprezar. Já se sabe que, neste sistema, quando muito se fala de um tema é para o dissolver no nada. Foi como se a indigestão de Maio de 68 servisse para integrar a ideia que é coisa do passado, dos historiadores da vida morta, coisa acabada. Pois, infelizmente para eles e elas, não é. O Maio de 68 é coisa do presente e do futuro. Se houver futuro! Se não deixarmos as forças da morte, da alienação e da mentira, continuarem o seu trabalho destruidor. E, por isso, celebrar o Maio de 68 só pode ser feito continuando a batalhar por um outro presente.