Crítica: The Art of The Deal (1987), Donald J. Trump

Texto de João N. S. Almeida.

Escrito em 1987, no auge inaugural da sua popularidade enquanto magnata do imobiliário, The Art of the Deal foi pensado inicialmente como uma autobiografia. Mas desde cedo o escritor-fantasma Tony Schwartz percebeu que o modo mental de Trump não é dado a reflexões sobre o passado, tendendo apenas para a absolutização do presente. O livro assumiu assim uma forma mista, algures entre o manual de negócios, o relato realista na primeira pessoa da sua rotina, e a biografia, resultando num género adaptado e numa obra a que Trump hoje chama, com o exagero característico, o seu segundo livro favorito, a seguir à Bíblia[i]. Grande parte da narrativa assemelha-se a um manual de conselhos práticos sobre como fazer negócios, mas o relato da ascensão de Trump pretende também ser uma descrição do pequeno sonho americano, apesar de o autor ter já nascido em meio afortunado. Em ambos os registos, o tom do livro é caracterizado por uma doçura que é até aprazível, contrariando uma ideia preconcebida acerca do homem de negócios predatório. Assim, se por um lado a obra poderá ser considerada um exercício de soberba, por outro pode ser lida como o elogio de uma paixão. As duas leituras não são absolutamente incompatíveis, e para entender Trump é necessário entender isso. Outra dualidade que é importante notar é a distinção entre facto e ficção, distinção que assume, quer no relato do livro quer na vida pessoal e pública do autor, formas inesperadas. Para entender Trump é assim necessária uma análise pré-moral do terreno mental em que se move.

I like thinking big. I always have. To me it’s very simple: if you’re going to be thinking anyway, you might as well think big. Most people think small, because most people are afraid of success, afraid of making decisions, afraid of winning. And that gives people like me a great advantage.[ii]

I play to people’s fantasies. People may not always think big themselves, but they can still get very excited by those who do. That’s why a little hyperbole never hurts. People want to believe that something is the biggest and the greatest and the most spectacular.

Se por um lado parece fácil categorizar muitas das suas distorções ou exageros de factos como mentiras, Trump descreve-as como truthful hyperboles. Como mercador que é, ele apresenta o seu produto apenas sob certos ângulos, sob uma certa descrição, usando a figuratividade da linguagem e a faculdade da imaginação para modelar um real que está sempre sujeito à interpretação. Se, por exemplo, em Bob Dylan, e na tradição do romance autobiográfico, esse exercício é considerado liberdade poética, no caso presente do mercador, uma figura cuja má reputação até na Bíblia está atestada, considera-se que se trata de um logro. Ambos os casos, o do poeta e o do mercador, são semelhantes, já que existe uma aventura extra-moral no seu uso da linguagem e da imaginação para modelarem a realidade do consenso. Ao artista, permitida a amoralidade da representação da verdade, dado que a necessidade de correspondência entre interior e exterior do sujeito é amenizada, chegando até ao ponto onde o interior, na tradição romântica, tem liberdade para ocupar e preencher o exterior. Essa aventura é assim tolerada através da teleologia da arte pela arte. Mas, no mercador, a submissão do artifício ao dinheiro merece censura, e a indistinção implícita entre facto e valor feita é tida, pelo crítico intelectual vigente, como sinal de amoralidade. Apesar desse preconceito, Trump deixa claro, em vários pontos da obra, que é mais importante o fazer do que o ter, mais importante a competição e o jogo do que a obtenção de retornos objectivos como dinheiro, satisfação, qualidade.

I don’t do it for the money. I’ve got enough, much more than I’ll ever need. I do it to do it. Deals are my art form. Other people paint beautifully on canvas or write wonderful poetry. I like making deals, preferably big deals. That’s how I get my kicks.

I don’t say this trait leads to a happier life, or a better life, but it’s great when it comes to getting what you want. This is particularly true in New York real estate, where you are dealing with some of the sharpest, toughest, and most vicious people in the world. I happen to love to go up against these guys, and I love to beat them.

Pode pensar-se, é certo, que tais afirmações são meramente cosméticas e não retratam minimamente a verdade, dado que Trump terá como seu fim último o dinheiro pelo dinheiro, de acordo com o retrato habitual que se atribui aos magnatas, se é que tal uso do meio pelo fim é realmente possível. O uso da ficção, tanto no caso do poeta como também o do mercador, mereceriam a reprovação de Platão, mas não de Oscar Wilde. Ao contrário da mentira comum, que pretende passar-se por verdade, a truthful hyperbole de Trump aproxima-se mais de uma mentira que busca circularmente validade em si mesma, constituindo aquilo a que Wilde tratou como o nobre ofício do verdadeiro mentiroso, distinto da mentira semi-justificável do comum político.

I assure you that they [the politicians] do not. They never rise beyond the level of misrepresentation, and actually condescend to prove, to discuss, to argue. How different from the temper of the true liar, with his frank, fearless statements, his superb irresponsibility, his healthy, natural disdain of proof of any kind![iii]

É no relacionamento com a imprensa, que é, na contemporaneidade, o primeiro fixador do facto, que esta postura de Trump levanta mais problemas. Enquanto narrador do real, espécie de projecção distorcida do common sense realism, a imprensa exige sujeitos passivos. Mas Trump não se encaixa facilmente nesse papel, assumindo-se como co-autor do relato, sem nenhum pudor em manipular o facto a seu favor. Reagindo, assim, à descrição com a contra-descrição, Trump coloca-se, enquanto personagem da notícia, na posição incomum de igualdade perante o autor, democratizando a relação entre as partes. Isto ocorre não só entre a parte produtora, o sujeito, a imprensa, e a parte do objecto do relato, Trump ele próprio, mas chega ao ponto de alargar essa liberdade até ao público, já que os comentários jocosos que frequentemente faz sobre a imprensa são acompanhados de alguns outros sobre o seu próprio discurso, como que incentivando a audiência a construir a sua própria opinião.[iv] Nenhuma delas nos dá um relato empiricamente neutro, e Trump sabe disso, mas o que rejeita liminarmente são as descrições da imprensa como ponto de partida de interpretação do facto.

My people keep telling me I shouldn’t write letters like this to critics. The way I see it, critics get to say what they want to about my work, so why shouldn’t I be able to say what I want to about theirs?

Perante um autor pretensamente tão poderoso, é difícil aferir uma realidade de consenso entre as várias partes. Apesar disso, nem Trump, nem os narradores do jornalismo, nem o público, negam em absoluto que os factos existem, e todos sabem que um relato de consenso pode existir. Mas a posição de Trump é propositadamente bélica, já que por detrás do termo fake news que utiliza para designar todo e qualquer conteúdo que o hostilize, também as notícias falsas existem efectivamente, dado que não existe jornalismo neutro. Trump coloca-se assim em posição de igualdade perante o interlocutor, subindo ou descendo a fasquia do uso da imaginação conforme o interlocutor que tiver diante de si, como se se tratasse de uma outra parte de um negócio em curso.

The other thing I do when I talk with reporters is to be straight. I try not to deceive them or to be defensive, because those are precisely the ways most people get themselves into trouble with the press. Instead, when a reporter asks me a tough question, I try to frame a positive answer, even if that means shifting the ground.

Neste ponto, acompanho o pensamento do professor António M. Feijó, que referiu, numa palestra sobre fake news, que Trump não diz as mentiras como verdades, qual comum mentiroso. Ele diz mentiras como mentiras, assumindo um papel meta-ficcional que parte do ponto de vista de um idealismo subjectivo radical, o imaterialismo de George Berkeley. Trump, como Berkeley, não nega a existência de coisas, mas reduz essa existência à sua percepção delas. É importante notar como esta não é a posição de um materialista, conforme é comum caracterizarem-se os mercadores magnatas, já que em Trump é mais fundamental a impressão sensitiva subjectiva e abstracta, e não um calculismo material.

I called my friend back and I said, “Listen, there’s something about this that bothers me. Maybe it’s that oil is underground, and I can’t see it, or maybe it’s that there’s nothing creative about it. In any case, I just don’t want to go in.

Aqui, Trump equivale conhecer a ver, e negociar a criar. Esta posição é o oposto da figura do investidor que tem uma relação distante com a abstracção do dinheiro, procurando apenas o retorno quantitativo. No caso presente, a sensibilidade de Trump exige proximidade e tacteabilidade, afastando-se da abstracção programática dos projectos, dos cálculos e dos estudos de opinião e preferindo o gut feeling, ou seja, uma abstracção formal. Esta sensibilidade é derivada do talento necessário ao seu ofício, já que para Trump este envolve vender sonhos, ideias, ideais. Avesso ao risco, possessivo, ele não é um especulador sem rede ou um jogador que ponha todas as fichas na mesa, ou, pelo menos, é assim que se retrata. Parece mais atraído por parecer ser abastado do que realmente sê-lo, e parece saber que o material é volátil, e que o capital está sempre sujeito a flutuações no valor. Daí ser tão importante o papel que o agente tem na criação de valor extra-material.

By contrast, we took our strengths and promoted them to the skies. From day one, we set out to sell Trump Tower not just as a beautiful building in a great location but as an event. We positioned ourselves as the only place for a certain kind of very wealthy person to live—the hottest ticket in town. We were selling fantasy.

Voltando ao tópico inicial deste ensaio, não se sabe ao certo se Trump, em The Art of the Deal, está a descrever-se como é de facto ou como gostaria de ser. Mas os dois conceitos não têm necessariamente de se contradizer. Só uma teoria que dualize em absoluto a coisa-em-si e o fenómeno pode colocá-los como antagónicos, e não é claro que Trump se mova num terreno em que essa dualidade seja assim tão vincada. Ele vê-se ao mesmo tempo que é, não existindo diferença entre um interior substancial e um exterior superficial ou acidental. Esse est percipi. Trump vê-se como uma ideia, uma marca, e a sua relação com o produto, o material, é a mesma relação da ficção, ou da imaginação, com a coisa. Nesse mundo trumpiano, só se é grande parecendo grande, e mesmo que a relação entre substância e aparência seja constituída por um logro, a aparência mantém-se potencialmente mais substancial. Isto é notório na sua reiterada admiração pelo arte do parecer, desde a fachada de um edifício até aos bullshit artists.

The first thing we did was invest in beautiful white shutters for the windows. That may not sound like a big deal, but what the shutters did was give a bunch of cold red brick buildings a feeling of warmth and coziness, which was important.

I can always tell a loser when I see someone with a car for sale that is filthy dirty. It’s so easy to make it look better.

Neste ponto de conclusão, ocorre-nos lembrar como, em Maio de 1968, os filhos da geração que regressou da guerra fartaram-se do sistema pacificado e funcional que daí resultou e inventaram, entre várias ideias boas e alguns disparates, um slogan. A imaginação ao poder. O detournement implícito nesse slogan é assim sujeito a um novo detournement, tendo os seus autores possivelmente desvalorizado o que significa imaginação e os seus limites, como tantas vezes acontece nas oficinas da política. Esquecendo-se que as fronteiras da imaginação coincidem com as fronteiras da percepção, os relativistas de 1968 têm aqui a sua resposta, que nos lembra como devemos ter cuidado com aquilo que desejamos. Para concluir, podemos apresentar o próprio co-autor do livro, Tony Schwartz, como exemplo dessa intelectualidade vigente.

I don’t think Donald Trump has an inner life. I don’t think there’s something different going on inside him than you see going on outside him. It’s not just that he’s not introspective; there’s nothing in there to introspect about. Again, for me to label him is unreasonable, but he certainly strikes me as someone without much of a soul or a conscience or emotional range that you would associate with most human beings.[v]

Exercendo também um artifício imaginativo, o intelectual pretende encontrar no outro uma vida interior, um sujeito pensante, reconhecível como seu reflexo, espelho da sua actividade intelectual. Ele despreza o rústico, o braçal, o negociante, e pretende encontrar no camponês um poeta, no metalúrgico um crítico social, e em cada ser humano um filósofo. Este intelectual é capaz de distinguir uma dimensão interior, mental, porventura moral, e uma dimensão exterior, fenoménica, superficial. Consegue distingui-las e admitir que, na arte, a primeira não rege necessariamente a segunda, e na vida não existe segunda sem a primeira. Mas enquanto estabelece estas hierarquias morais, que implicam um relativismo conforme a teleologia da arte em questão, ao mesmo tempo recusa-se a pôr-se em jogo num relativismo que não sirva aos fins que prefere. O crítico atribui assim à verdade um valor absoluto e toma exercícios figurativos por engenho poético, quando o sujeito lhe agrada, ou por mentira, quando o sujeito o desagrada. A acusação de Schwartz, a de que Trump não tem conteúdo interior mas apenas forma, seria, quando aplicada a um artista, um dito de grande elogio. Mas aplicada ao “homem comum”, dado que o grande defeito de Trump, para a maior parte dos seus críticos, é ser um boçal e não um ser superior, é insulto, representando uma liberdade que o intelectual não lhe autoriza.

[i] http://www.msnbc.com/all-in/watch/donald-trumps-favorite-book-505029187689?v=raila&

[ii] Trump, Donald. The Art of the Deal. USA: Random house, 1987. Doravante todas as citações não assinaladas serão desta referência.

[iii] Wilde, Oscar. The Decay of Lying. New York: Brentano, 1905 [1889].

[iv] https://www.newsweek.com/donald-trump-kim-jong-un-summit-excuse-972426?amp=1

[v] https://www.pbs.org/wgbh/frontline/interview/tony-schwartz/