Por um cêntimo, um punhado de jasmim, Rita Ferreira

Foto por Claudina Diego

O sol ainda não tinha começado a raiar e já o cheiro de jasmim se elevava até à janela onde Fernanda aguardava a hora de sair de casa, com a cabeça afundada nos braços e um cigarro que se ardia sozinho entre os dedos. Mala só fora necessária uma, para já. O resto posso vir buscar mais tarde, tinha-lhe dito Felícia. Venho aí… um destes fins-de-semana, talvez daqui a duas ou três semanas. Vamos beber café, sim?

Era segunda-feira. Às dez horas em ponto esperavam-na no edifício da PT no Areeiro. A formação tinha chegado ao fim, estava na altura do exame final. Fernanda passara a noite anterior com a testa a arder, com os olhos a arder e agora a última coisa que queria era ter de falar com estranhos ao telefone.

Queria desistir, mas sabia que não podia. Tinha tentado encontrar justificações para tal desistência, mas nenhuma era satisfatória. Tinha por fim deambulado pelas ruas abandonadas ao frio das três da manhã num delírio febril à espera que um carro surgisse da névoa e a livrasse da obrigação de viver num mundo que não desiste de girar. Nenhum carro apareceu. E Fernanda teve de aceitar que 1) precisava do dinheiro, especialmente agora que ia ficar com a renda do quarto só a seu cargo, e 2) se a Felícia soubesse que ela tinha desistido – e ela iria saber, era inevitável – então ficaria ainda mais aliviada, mais segura da sua decisão de a deixar.

A semana de discussões e frustrações tinha acabado. Hoje era dia de exame. E pensar que tudo tinha começado com um cêntimo.

Duas maçãs e uma caixa de areias era tudo o que Fernanda tinha na sua lista mental quando chegou ao Continente. Uma maçã para a Felícia, a outra para si e as areias eram para a Felícia dividir com as colegas no trabalho. Ela, Fernanda, nem sequer ia abrir a caixa, ia lá chegar com ela selada.

Pôs-se na fila e lançou um tímido e educado sorriso à senhora idosa que se encontrava à sua frente. Os seus óculos de sol faziam com que ler o seu olhar fosse impossível, mas nada fizeram para mascarar o franzir de sobreolho que crivou um ar de medo na cara de Fernanda. Desviou os olhos muito apressadamente para o tapete, encolheu os ombros e baixou a cabeça, perfeitamente ciente de que ainda era observada. Juntou-se à fila um casal com um cesto que consistia inteiramente em doçuras. E ainda a velha a observava. Fernanda olhava para as botas; a velha usava uns sapatos pseudo-ortopédicos pretos, e umas meias pretas com uns quadrados garridos amarelos despontavam por debaixo de uma saia roxa. Aqui Fernanda começou a ter alguma dificuldade em respirar. Não porque a mistura de cores de tal modo a ofendera – ela mesma já fizera escolhas bem mais graves contra o bom senso – mas porque já não era a primeira vez que via aquelas meias. Conhecera em tempos uma outra velha que também as usava, uma excêntrica lá da terrinha, que atirava laranjas aos cães, fazia bruxaria com sapos e comprava meias pretas aos quadrados amarelos todas as quinzenas.

Fernanda só arriscou olhar para cima quando foi a sua vez de pagar. Tinha acabado de guardar as duas maçãs e a caixa de areias quando reparou que a velha tinha deixado para trás um cêntimo. Agarrou nele; ainda via a velha a atravessar a rua. Se corresse, se tivesse corrido, ainda lhe podia entregar o cêntimo. Mas pareceu-lhe estúpido todo esse esforço por um cêntimo. E além disso, a mulher lembrava-a da velha Cândida, e ela tinha muito respeito e muito medo a essa mulher. Então guardou o cêntimo no bolso das calças. Foi até ao metro com as duas maçãs e a caixa de areias. Sentia o cêntimo a queimar-lhe a coxa, a marcá-la. Quando por fim saiu na Baixa, sacou o telemóvel e mandou a seguinte mensagem:

A velha Cândida tinha razão. Tinhas razão. Estou amaldiçoada. Estamos.

As discussões começaram nesse dia. Felícia não lhe ofereceu uma areia, o que a magoou, estupidamente. Daí foi um saltinho para, só pensas em ti, só falamos de ti e das tuas merdas e eu? Eu estou na merda, Felícia, e tu não notas, como é que não notas, três anos e ainda não me conheces. Claro que não era verdade, Fernanda sabia disso, sabia-o agora enquanto esperava a hora de sair para o exame e sabia-o na altura. Mas não conseguia impedir o veneno de sair – aquele cêntimo que lhe ardia no bolso inflamava-lhe a raiva. E Felícia, recusando-se a discutir, fechava-se em sete copas, punha-se à janela com o seu chá de jasmim com o lábio a tremer muito delicadamente. E Fernanda sentia que aquela raiva era uma corda ao pescoço que se apertava a cada momento de silêncio. E começou a pensar, afinal, isto tudo para quê? Aos vinte e cinco e sem curso, com um trabalho na McDonald’s e agora uma formação para um call-center. E o raio da Faustina não lhe respondia à mensagem.

Quanto mais pensava no assunto mais se sentia tentada a culpar Faustina. Criança irrequieta, toda a gente – desde as educadoras de infância à própria mãe – dizia que a rapariga tinha o demónio no corpo. Isso era o que mais agradava a Fernanda, ratinho de biblioteca que era. Faustina, que não tinha problemas em atirar pedras e dar com paus aos que a irritavam, nunca o fizera a Fernanda, e tivera por ela um apreço especial. A amizade tinha verdadeiramente começado num dia particularmente frio na quarta classe em que as aulas tinham sido canceladas por causa da neve. Faustina tinha anunciado ao resto da turma que ia espiar a velha Cândida e aprender como é que ela fazia bruxaria. O anúncio era um desafio e só Fernanda é que o aceitou. Foram as duas sozinhas por caminhos que Fernanda desconhecia mas que Faustina conseguia ler, tal como se dizia que a velha Cândida lia palmas da mão. Acabaram por não encontrar a velha. A casa estava completamente às escuras e quando começou a chover e o vento começou a uivar, cerca de duas horas depois de terem iniciado a sua vigília, viram-se obrigadas a voltar para casa.

É difícil dizer quantas vezes foram as duas espiar a velha Cândida. Os gatos pretos que cirandavam pela horta assustavam Fernanda, as árvores altas e feitas de sombra que ondulavam na distância desconcertavam-na e no entanto continuava a ir. Nem lhe passaria pela cabeça não ir. Queria fazer bruxaria e queria que Faustina continuasse a ser sua amiga. Só no sexto ano é que começou a perceber porquê. Estava com Faustina à beira do rio, num dia particularmente quente, a olhar para as mãos quando num só fôlego disse:

Sou capaz de passar horas a olhar para as minhas mãos, para os braços, as pernas, horas, à procura do limite, dos meus contornos. Estou sempre à procura duma linha preta que me delimite do resto do mundo que me faça destacar mas nunca a encontro não sei onde está o limite mas consigo vê-lo nos outros os outros sobressaem não são engolidos pelo espaço eu faço o espaço à minha volta disforme porque sangro para cima das coisas fica tudo borratado como quando passas o dedo por cima duma linha duma linha acabada de fazer a marcador e ficas com a cor no dedo e um rasto no desenho onde devia estar uma linha não sei onde está o limite mas tu – tu estás acima de tudo isto, de mim, tenho de continuar ao teu lado, se não, não tenho definição e morro.

E depois, provavelmente porque era verão e estavam quarenta graus e Fernanda lidava com o calor notoriamente mal – desmaiou.

Acordou com Faustina muito assustada, genuinamente assustada, e com a velha Cândida a rabujar qualquer coisa sobre os pais de hoje em dia não terem mão nos catraios. A velha Cândida ofereceu-lhes um refresco em sua casa. As paredes estavam pintadas da cor de vinho, com estantes carregadas de livros com títulos ilegíveis e pó, e bonequinhos de porcelana estavam espalhados por tudo quanto era canto. Fernanda ainda não tinha recuperado da vergonha quando Faustina perguntou, com o seu desplante do costume:

Bruxa, consegues ver o futuro?

O cigarro apagou-se sozinho. Fernanda levantou-se. Ainda faltava uma hora para o exame, mas não tinha fome e não queria voltar para o quarto que era demasiado grande para uma. O telemóvel estava sobre a mesa e a tentação de ligar a Felícia e pedir-lhe para voltar era grande, incomportável, quase o suficiente para lançar o telemóvel pela janela fora, para cima do jasmim no pátio da vizinha. Se ela tivesse dado ouvidos à velha Cândida. Se ao menos nunca lá tivesse ido.

– Foda-se Faustina, odeio-te, odeio-te.

A velha Cândida acedeu a ler-lhes a sina, mas em separado. Fernanda sentiu que ia desmaiar outra vez. Desta vez, por pura cobardice. Não queria saber o futuro. Como não podia deixar de ser, Faustina foi primeiro e Fernanda esperou lá fora, junto das couves e do jasmim. Faustina saiu de casa da velha Cândida cerca de quinze minutos depois com os olhos muito arregalados, muito vermelhos, evidentemente esforçando-se ao máximo para não chorar. A preocupação de Fernanda foi entrecortada por medo e por uma sensação de alívio indescritível – agora seguramente podiam ir embora dali a correr. Como se lhe lesse o pensamento, Faustina pôs-lhe as mãos nos ombros e fixou aqueles olhos azuis claríssimos nos seus e disse apenas, Vai. Era um novo desafio e, mais uma vez, Fernanda não pôde recusar. Manteve os olhos baixos enquanto passava pela velha Cândida e foi incapaz de suprimir um gritinho quando esta fechou a porta.

Sentou-se novamente no sofá, apertando tanto as mãos que parecia querer arrancá-las. A velha Cândida ignorou-a, estava a cumprir o seu papel de bruxa e cumpria-o bem. Já tinha assustado Faustina e agora era a vez de Fernanda.

Mostra lá a palma.

Fernanda, muito relutantemente, mostrou.

Tu és fraca. A verdade da afirmação atingiu-a em peso. Não vais ter filhos nem casamento. Vais vaguear pelos corredores da tua vida sozinha e sem direção e todas as portas que passares vão-se fechar, e com cada baque um pedaço de ti vai cair. Vais encontrar a felicidade e vais desperdiçá-la. Vais querer culpar a tua mãe, o teu pai, a tua amiga, mas no fundo, a culpa vai sempre ser tua.

Fernanda mordeu o lábio até sangrar. Queria revoltar-se, gritar e atirar com a mesa ao chão, queria fazer qualquer coisa. Se o fizesse, se conseguisse escolher e agir, dizer o que pensava, então iria provar definitivamente que a velha estava errada. Mas o momento para agir passou. Já a velha lhe fazia sinal para que ela se levantasse, já ela estava de pé muito cabisbaixa, quando o grito animalesco de Faustina fez todo o ar tremer.

Toda a semana discutiram. Sempre que ia à janela, Fernanda sentia o cheiro a jasmim e lembrava-se de Faustina. Tinha a vívida imagem da rapariguinha de treze anos a arrancar punhados de jasmim do jardim da velha Cândida com um ar desvairado, absolutamente possesso. E sempre que se lembrava de Faustina ficava mais irritada e mais discutia com Felícia. Eu não sou boa o suficiente para ti, não é? Era verdade, sentia-o, sentira-o desde que a conhecera, mas queria que Felícia discordasse. E ela discordou, na segunda, na terça, na quarta, mas na quinta-feira ficou em silêncio e na sexta disse-lhe:

Se acreditas mesmo nisso, faz alguma coisa.

Se queres acabar, acabamos.

No sábado acabaram.

Não se pode salvar quem não quer.

No dia em que se candidataram à faculdade Faustina quis sair para festejar. Quis ir jantar fora e fez uma reserva e sentou-se na zona dos fumadores e mostrou a Fernanda o maço de tabaco que tinha acabado de comprar com a mesada. Estava de muito bom humor.

Vamos ser incríveis. Ouve-me bem, porque eu é que sei o que digo. Velha estúpida, sabe lá o que diz. Incríveis, ouviste? Não faças de mim mentirosa.

Aquela confiança era o poço onde Fernanda ia beber. Mas desta vez, sabia-lhe a pouco.

Nunca me disseste o que ela te disse.

Faustina apenas encolheu os ombros. Nem vale a pena, não voltes a perguntar. E Fernanda não voltou.

Foi já no fim do jantar que as sombras se adensaram nos olhos de Faustina. Agarrou na mão de Fernanda por debaixo da mesa e disse, num só folego:

Ouve, não podemos ver-nos mais. Se continuarmos assim, perdemos as duas. Liga-me daqui a uns anos, mas até lá não digas nada. Vive a tua vida. Depois conta-me o que fizeste. Não me ligues até teres feito alguma coisa que valha a pena. Aquela velha amaldiçoou-nos mas não vai ganhar. Toma, vou-te dar este frasco de jasmim para te dar sorte. Vou-me embora agora, não me sigas.

E assim foi. Faustina foi para o Norte e Fernanda foi para o Sul. O frasco de jasmim partiu-o na noite em que o recebeu, por raiva, tristeza, porque lhe doía tudo. Uma das pétalas guardou-a e quando se deitou nessa noite, pô-la debaixo da língua, deixou que se derretesse na boca, que a doçura amargurada a enchesse e pensou em Faustina, pensou que a partir daquele momento tudo correria mal. Ficou na cama durante dias. Sempre que se levantava, o mundo começava a rodar.

Da faculdade desistiu ao fim do primeiro ano. Não foi capaz de dizer à família, nem tão pouco de voltar a casa. Ficou-se pelo primeiro trabalho que arranjou, o turno da noite no McDonald’s, sempre à espera que algures às quatro da manhã o rumo da sua vida fosse mudar. Mas, afinal, mudou às quatro da tarde, quando, para fugir da chuva, entrou numa exposição na Baixa e conheceu a Felícia. Foi a Felícia que a convidou para beber café quando o seu turno acabasse, e estavam na fila quando a Fernanda disse, Gosto muito do teu nome, Patrícia. E Felícia teve de a corrigir, Não sou a Patrícia, sou a Felícia. Patrícia era o nome da colega, ela usava a fita dela no trabalho porque ainda não tinham feito uma para ela. A Felícia tinha uns fones para piano gigantes e gostava de poesia e odiava jasmim, bebia carioca de limão e era ‘de Letras’. A Fernanda não sabia muito bem o que isso significava, mas gostava da maneira como soava. E no fim dessa tarde, quando Felícia lhe passou o seu endereço de email (toda a gente dá o número de telemóvel ou o Facebook, assim é mais especial), Fernanda soube que ela era a sua felicidade, o seu pivô.

Meia-hora para ter de sair de casa. Fernanda está na casa de banho a enxugar os olhos. O cêntimo tem-no guardado no bolso. Precisas deste trabalho, pensa no exame. Precisas disto.

De repente, o som de duas mensagens a cair.

Fernanda ainda pensa em não as ler, esperar até depois do exame, mas não consegue resistir.

Faustina e Felícia. São as duas mensagens curtas, nem precisa de as abrir para as ler.

Não faças de mim mentirosa.

Vou sempre amar-te muito.

É segunda-feira e está na hora do exame. Fernanda guarda o telemóvel e pega na mochila. Desce até à rua com o rosto ainda manchado de lágrimas que tentou em vão conter. Começa a subir a rua. Talvez se fosse terça-feira poderia cantar as suas desaventuras, e sorrir, nervosa.

Rita Ferreira