A Saga de Eiríkr o Vermelho, capítulo 4

Tradução do islandês antigo de João Maria Carvalho, Marcos Helena e Miguel Andrade.
Revisão da tradução por Ivan Figueiras.

Imagem: Summer in the Greenland coast circa the year 1000, Carl Rasmussen.

[Nota contextual por Miguel Andrade: Na Islândia, a partir do século XII, escreveram-se as sagas, um dos grandes fundos literários medievais. Os seus temas variavam grandemente, passando pelas lendas de tempos ancestrais, façanhas heróicas dos antepassados germânicos, mas também pela colonização da própria Islândia e dos outros territórios do grande Norte. “A Saga de Eiríkr, o Vermelho” (Eiríks saga rauða) pertence a estas últimas histórias, do género das islendingasögur (“Histórias dos Islandeses”). Chega-nos em dois manuscritos apenas, um do séc. XIV e outro do séc. XV, mas julga-se que terá sido escrita no séc. XIII. É notável por conter um dos poucos testemunhos escritos que relatam a chegada dos viquingues à América do Norte. O capítulo que agora vos apresentamos, não ilustrando um momento marcante para a História da europa ocidental, tem, no entanto, um assunto que os próprios islandeses não considerariam singelo – face a uma época de fome, consulta-se uma profetisa. Com esta tradução inédita, procuramos assim verter para a língua portuguesa algo desta idiossincrasia que se encontra no mundo das sagas: com os relatos históricos, uma sociedade cristã e o realismo cruel, convivem sem qualquer estranheza os espíritos, o sobrenatural e o velho poder das palavras. Os caracteres thorn “þ” e eth “ð”  devem ler-se como um th inglês (respectivamente “three” e “that”).]

Naquele tempo havia uma grande escassez na Gronelândia. Os homens que tinham ido à pesca apanharam pouco peixe, e alguns não regressaram.

Naquele lugar havia uma mulher que se chamava Þorbjörg . Ela era uma profetisa e chamavam-lhe “pequena vidente”. Tivera nove irmãs, todas profetisas, mas só ela estava ainda viva.

Era costume de Þorbjörg, durante o Inverno, fazer visitas e eram sobretudo os homens curiosos por saber o seu destino ou fortuna que a convidavam para casa. E porque Þorkell era aí o maior proprietário, então pareceu que lhe cabia a ele procurar saber quando se iria levantar a penúria que sobre eles pesava. Þorkell ofereceu casa à profetisa, e ela foi muito bem-recebida, como era hábito quando se acolhiam mulheres deste costume. Foi-lhe preparado um lugar elevado e posta debaixo dela uma almofada recheada de penas de ave.

Quando ela chegou pela noite com o homem que havia sido enviado ao seu encontro, tinha sobre si um manto azul com uma correia, orlado de pedras preciosas de cima a baixo. No pescoço, contas de vidro . Na cabeça, um capuz de pele de cordeiro preto, cujo interior estava forrado de pele de arminho branco. Na mão, um bastão com um castão de latão, ornamentado de pedras que o circundavam. Na cintura, tinha um cinto [1], onde estava presa uma grande bolsa de pele, na qual guardava os seus talismãs, dos quais precisava para ter magia. Nos pés, usava uns sapatos peludos de pele de bezerro, com longas correias e grandes borlas de latão nas extremidades. Nas mãos, luvas de pele de arminho, que eram brancas e peludas por dentro.

Quando ela entrou, todos se sentiram obrigados a endereçarem-lhe cumprimentos cordiais. Ela reagiu consoante as pessoas lhe agradavam. O lavrador Þorkell segurou a vidente pela mão e conduziu-a até ao assento que tinha sido preparado para ela. Þorkell pediu-lhe que lançasse o olhar sobre os criados, o rebanho e a casa. Ela mostrou-se circunspecta.

À noite, as mesas estavam postas e o que estava preparado para a feiticeira eram papas de leite de cabrita e corações de todos os animais disponíveis. Ela tinha uma colher de latão e uma faca com cabo de dente de morsa unida com dois anéis de cobre, que estava quebrada na ponta.

Quando as mesas foram levantadas, o lavrador Þorkell aproximou-se de Þorbjörg e perguntou-lhe o que achava do que via à sua volta e se lhe agradavam a casa e as maneiras dos homens. Perguntou-lhe também quanto tempo ela levaria a tomar conhecimento daquilo que lhe tinha perguntado e que todos os homens estavam ansiosos por saber. Ela disse que não diria nada até à manhã seguinte, quando ela tivesse dormido uma noite.

Já ia o dia seguinte avançado quando lhe deram aquilo de que ela precisava ter para fazer a magia. Ela também pediu que lhe cedessem mulheres que soubessem os encantamentos, que são necessários para a magia e se chamam Varðlokur [2]. Mas não havia tais mulheres. Então perguntou-se ao pessoal da casa se alguém os conhecia.

Guðríðr respondeu: “Eu não sou nem feiticeira, nem vidente; porém, a minha ama [3] Halldís ensinou-me na Islândia esses cânticos, a que ela chamava Varðlokur.”

Þorkell disse: “És muito sabedora.”

Ela disse: “Esse é um procedimento em que não desejo de maneira nenhuma tomar qualquer parte, porque sou uma mulher cristã.”

Þorbjörg disse: Poderias muito bem ajudar as pessoas presentes e não serias pior mulher do que antes. Mas encarrego Þorkell de que me forneça tudo quanto preciso.”

Þorkell insistiu então com Guðríðr, e ela declarou que iria fazer como ele queria. As mulheres formaram um círculo à volta do escabelo, e Þorbjörg sentou-se em cima. Então Guðríðr entoou tão bem um cântico muito belo, que nenhum dos que ali estavam julgou ter ouvido antes cantar-se com uma voz mais bela.

A profetisa agradeceu-lhe o cântico e disse terem estado presentes muitos espíritos, que consideraram o cântico belo de ouvir ao ser tão bem recitado. “Antes queriam afastar-se de nós e não nos conceder obediência. E agora muitas coisas são evidentes para mim, que antes eu e muitos outros desconhecíamos. E posso dizer-te isto, Þorkell, que esta escassez não vai durar mais do que o inverno, e que a safra vai melhorar com a chegada da primavera. Essa doença, que nos tem oprimido, vai melhorar mais rápido do que o esperado. E a ti, Guðríðr, eu irei recompensar de imediato a ajuda que tu nos concedeste, pois o teu destino é-me agora completamente claro. Tu vais arranjar casamento aqui na Gronelândia, o mais conveniente, ainda que para ti não seja duradouro, pois os teus caminhos estão na Islândia. É aí que virá de ti linhagem tão abundante como boa. Sobre os teus descendentes refulgirão raios mais brilhantes do que eu tenho poder para ver claramente. Assim, vai com saúde, filha.”

Depois os homens foram ter com a vidente, e inquiriram sobre aquilo que tinham mais curiosidade em saber. Ela também era boa a contar histórias. O que ela previra aconteceu como tinha dito, sem grande diferença. Depois disto, chegou alguém de outra propriedade à procura dela. Ela foi para lá. Então procuraram por Þorbjörn, pois ele não quisera estar em casa enquanto tal superstição era praticada.

O tempo melhorou rapidamente, como Þorbjörg havia dito. Þorbjörn preparou o seu barco e viajou até chegar a Brattahlíð. Eiríkr recebeu-o bem, amigavelmente, e disse que era bom que ele tivesse vindo até ali. Þorbjörn esteve com ele e com a sua família durante o inverno, e a tripulação ficou alojada com camponeses. Depois, na primavera, Eiríkr deu a Þorbjörn terra em Stokkanes. Aí foi construída uma propriedade respeitosa, e ele viveu lá desde então.

Notas:

[1] Hnjóskulinda, no original – cinto feito de fungo (hnjóskur) que cresce nas árvores, usado também para o tratamento de feridas. É pouco claro de que maneira constituiria o cinto, mas costumava ser usado por mulheres sábias como Þorbjörg.

[2] Canções que atraem espíritos guardiães.

[3] Fóstra, no original – espécie de mãe-adoptiva. Instituição cultural em que filhos e filhas de proprietários eram enviados para outras famílias para ser criados.

[Ed. islandesa: Íslenzk Fornrit IV, Hið Íslenzka Fornritafélag, Reykjavík, 1935, pp. 206-209]

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Leiam aqui uma entrevista feita ao Prof. José Pedro Serra sobre o estudo do islandês antigo na FLUL.

Leiam aqui 4 poemas de J. L. Borges dedicados à Islândia, traduzidos para português.